O XAMANISNO E O CRISTIANISMO.

Muitas pessoas aparentemente consideram o Xamanismo como uma religião.. Compreendo isso como um retrato da nossa sociedade onde as religiões predominantes foram de tal maneira afastadas de suas raízes mitológicas que ao menos conseguimos reconhecê-las.

Na verdade, o que eu poderia dizer é que o Xamanismo é anterior à idéia que fazemos comumente de religião. Um xamã não é, necessariamente, um sacerdote, embora ele possa, em certas ocasiões e circunstâncias, desempenhar o papel de um.

Ou seja: o xamã se baseia na sua própria experiência e vivência, que lhe traz uma mensagem que, de alguma maneira, é passada para o seu povo. Já o sacerdote é alguém que recebeu a incumbência de passar uma mensagem, que não vem da sua própria experiência, mas sim das experiências de outras pessoas, que foram transformadas em religião.

Ao contrário do que acontece com os sacerdotes, nunca se formará um xamã através de estudo e leituras. O aprendizado é, antes de mais nada, prático e individual e, quando existe a figura do mestre, este nunca dirá ao aprendiz o que ele deve ver ou experimentar, mas apenas o guiará para que ele tenha as suas próprias experiências. Podemos supor, no entanto, que quando essas experiências começavam a ser passadas para o povo, na forma de ritos, elas começavam a formar uma religião.

Dessa maneira, em todas as religiões nós podemos encontrar restos de práticas e mitos ligados ao Xamanismo. Se soubermos reconhecer esses resquícios, poderemos com mais facilidade encarar o Xamanismo em toda a sua profundidade, sem a necessidade de tê-lo como religião, o que certamente acabaria por limitá-lo.

Para exemplificar, vou citar alguns exemplos de como o Cristianismo se relaciona com o Xamanismo. Escolhi o Cristianismo para isso porque, afinal, é uma tradição que todos nós conhecemos bem, e também porque foi uma das religiões que mais se afastou de sua mitologia original, sofrendo um processo que eu costumo chamar de “esvaziamento dos símbolos”.

Embora se possa estabelecer uma diferença entre os ritos de povos caçadores e aqueles de povos plantadores, não existe nenhuma tradição religiosa, hoje em dia, que não tenha sido influenciada por ambos os tipos de ritos. Embora o ritual cristão seja basicamente agrícola, existe nele uma série de influências que remontam aos tempos da caça.

Um exemplo é o nascimento de Jesus, de uma mãe virgem. Essa figura, presente em inúmeras tradições religiosas e mitos, remonta ao tempo em que o ser humano não associava o sexo à concepção: era a mulher a única responsável pela geração da criança. Da mesma forma, o período que Jesus passa no deserto, antes de começar a sua vida pública, nos remete ao isolamento que dá origem à experiência mística, típica do Xamanismo. Quase todas as lendas indígenas nos falam de um ancestral que, isolado e por sua própria conta, passa por uma experiência que transcende a realidade comum, e retorna dela para o seu povo com uma mensagem.

Por outro lado, na história de Jesus existem elementos que são típicos de culturas agrícolas. Um deles é o distanciamento do pai. Embora a mãe de Jesus seja Maria, o seu pai não é José, mas sim o “pai que está no céu”. Em última análise, pode-se dizer que toda a história de Jesus conta a sua busca por esse pai distante. Quando ele está com doze anos de idade, se perde em Jerusalém e é encontrado no templo, conversando com os doutores da lei. Quando lhe perguntam porque havia sumido, ele responde: “vocês não sabem que eu devia estar às voltas com as coisas de meu pai?”.

Bem, por volta dos doze anos era justamente a idade em que os jovens, nas sociedades agrícolas primitivas, passavam por sua iniciação adolescente, quando “iam em busca do pai”, ou seja: deixavam de estar aos cuidados das mulheres e passavam a fazer parte da sociedade masculina. Esse tema da busca do pai é também encontrado na mitologia grega, nas lendas de Telêmaco e de Hércules.

A figura da mãe era associada à terra, nessas sociedades. A mãe dá à luz e alimenta, assim como da terra se originam as plantas, que são o alimento. Para morrer, Jesus é preso a uma cruz de madeira fixada na terra (uma “árvore”), e assim vai ao encontro do seu pai no céu. No entanto, pouco depois ele ressuscita (volta à mãe-terra) para confirmar a sua mensagem divina.

Essa idéia de sacrifício, morte e renascimento é encontrada por todo o mundo, e está na própria base da idéia cíclica que norteia as concepções xamânicas. Tudo na Natureza é um ciclo, e desse ciclo depende a manutenção da vida. O animal deve ser abatido, a planta deve ser colhida, para que o ciclo se preserve. O próprio Jesus se coloca em certos momentos como o “cordeiro” – o animal que deve ser sacrificado – e em outros como o “pão” – o resultado da colheita do trigo. Se a planta do trigo não morrer, para que a sua semente seja plantada na terra e, assim, novas plantas nasçam, não poderá haver novas colheitas. A lenda indonesiana de Hainuwele, a menina que surge da folha do coqueiro e que, ao ser enterrada viva, dá origem a todas as plantas que alimentam a humanidade, trata exatamente do mesmo motivo.

Jesus é retirado da cruz depois de morto, ou seja, é “colhido”. Em seguida, é colocado em uma caverna – é enterrado, ou “plantado”, para depois renascer. Aliás, a idéia de morte e renascimento está presente em todas as culturas do mundo, na forma de ritos de iniciação, e é o componente básico do mito do herói.

Poderíamos continuar com esse paralelo em ambos os sentidos da História. Podemos encontrar referências xamânicas nas concepções do Velho Testamento, como a noção de um tempo paradisíaco na origem da humanidade. No próprio ritual católico, estabelecido ao longo da Idade Média, surge a prática de recitar vezes seguidas as mesmas orações com o uso de um terço, que nos remete a mantras e meditações que induzem a um estado alterado de consciência.

 

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